Em 1928 chegou a nossa paróquia,
como vigário. o Padre José Maria Leau, procedente da Alsácia Lorena, na França.
Entendeu o Padre que a vetusta e feiosa imagem pequenina de São João Batista,
que remontava aos tempos da construção da igreja, não condizia com os tempos
modernizados. Encomendou então para sua terra outra imagem de São João Batista.
Em 1930, chegada a encomenda, o
vigário fez a entronização solene do novo santo, em procissão partida de casa
paroquial. Como estávamos na festa de junho, no dia 24 São João Novo desfilou
garboso e triunfal, em procissão, pelas ruas do seu reinado: elegante, belo e
grande, de braço erguido, falando às multidões da Palestina.
E o santo velho, como reagiu?
Como não era possível a
existência de dois reis no mesmo trono, o vigário enterrou a imagem velha em
uma sepultura na casa paroquial, como se tivesse falecido. A reação dos devotos
foi de protesto. “Mataram nosso santo”, dizia a população mais radicalizada, e
o mal-estar foi-se contagiando da cidade ao interior da grande paróquia.
A festa de 1931 foi de tristeza e
frustração, com a presença do estrangeiro no altar e na procissão. Não era toda
a população que reagia, mas a revolta alcançava grande parte dos devotos,
especialmente pelo ato do sepultamento da imagem velha.
Aconteceu que no ano seguinte
caiu sobre o nordeste, e muito acentuadamente sobre São João do Piauí, a grande
seca de 1932, que deixou nosso município em situação de extrema penúria. Para
se avaliar a extensão do flagelo, não se teve notícia de safra alguma de
cereais em nossa terra. Enquanto isso, nos municípios vizinhos de Canto do
Buriti e de ltaueira, as colheitas foram razoáveis, a tal ponto de abastecer
nossa população. Comboios e mais comboios de jumentos e de burros iam e vinham
constantemente a essas regiões, em busca de milho, feião, farinha e rapadura. O
socorro maior recebido foi do governo do Estado, ocupado pelo Tenente Landri
Sales Gonçalves, que instalou frentes de serviços para construir açudes e as
duas estradas que nos ligam a São Raimundo Nonato e a Simplício Mendes.
Outro apoio que tivemos foi da
lagoa do Boqueirão, prodigiosamente
inesgotável na produção de peixes. As suas margens se constituíram moradias de
pessoas carentes, que pescavam dia e noite, parecendo um milagre de
multiplicação.
À proporção que a seca ia se
prolongando com suas funestas consequências, e a fome aumentando entre a
população mais carente, firmava-se a crença de que o flagelo era castigo dos
céus, pela maldade praticada contra o velho São João Batista, que contava quase
um século de reinado profícuo na paróquia. Simultaneamente surgiu a ideia, que
prosperava entre muitos paroquianos, de fazer-se uma reparação para aplacar a
ira celestial, a fim de que chuvas abundantes voltassem o mais cedo possível a
irrigar nossas terras. Formaram-se, então, duas correntes de opinião: uma a
favor de São João novo e outra intransigente em favor do santo velho. A
primeira se compunha da elite social da cidade, enquanto a segunda tinha seus
adeptos fervorosos entre a massa sofredora, cujo argumento maior era a fome, má
conselheira, que fazia o papel da liderança inexistente.
A única proposta que tomava corpo
entre os inconformados e agitadores era a reposição de São João Batista velho
no seu trono de honra. Sabiam, de antemão, que não contavam com a adesão do
Vigário, de modo que só restava o apelo à força. Essas conversas chegavam até a
cidade, cujos líderes e autoridades a recebiam inicialmente com desdém, depois
com dúvida e finalmente com receio de que tal violência pudesse ocorrer.
O foco da revolta mais decidida estava na
colônia dos negros, que, nessa época, tinham residência compacta nos lugares
Riacho do Anselmo, Boqueirão, Sacode e Lagoa de São João. Certo dia, a cidade
foi tomada de pânico pela notícia de que os negros, homens e mulheres, se
aproximavam da cidade, armados de espingarda, machados, foices, facas e facões,
para depor o santo novo e levar São João velho ao trono de que fora espoliado.
Como notícia ruim corre ligeiro,
a cidade ficou assustada e justificadamente temerosa. O padre José Leau era
temperamentalmente tido como homem corajoso e valente. Pegou o rifle, que
encheu de balas, suprindo-se de outras na capanga, e rumou para a igreja a fim
de receber os negros.
O Prefeito despachou, tão logo
foi possível, uns emissários montados a cavalo, para encontro com os incômodos
visitantes e convencê-los a desistir da vinda suicida, porque seriam recebidos
a bala. A cidade ficou tomada de angustiante expectativa, pois o quadro delineado
na imaginação era preocupante e podia ser desastroso.
Os emissários enviados para
parlamentar com os negros em conspiração, depois de percorrer as estradas dadas
como trajetória deles, regressaram no mesmo dia, com informação de que não eram
verdadeiras as versões que circulavam pela cidade. Embora estivessem solidários
com São João velho e aceitassem a seca como represália da sua destituição e
sepultamento, não havia planos de reação armada e violenta. Permaneciam em
orações ao santo profanado para que perdoasse os inimigos e socorresse os devotos,
enviando chuvas para todos.
A seca estava implacável. Além da
ausência de alimentos, as águas escasseavam pelo esvaziamento dos açudes. Nessa
época não se conheciam as máquinas perfuradoras de poços, de modo que secados
os açudes, o apelo seria, como foi, a retirada dos animais para as margens do
rio Piauí, ou de alguns riachos, onde a água aflorava pela escavação feita a
braços de homem. A situação era tão crítica que não se tinha notícia de açudes com
reservatório de água, já no meio do ano.
A perspectiva era de tristeza e
angústia pela incerteza de chuvas para tão breve e pela notícia de que as
reservas de víveres estocadas em Canto do Buriti e ltaueira chegaram ao fim.
Passamos, então, a receber farinha do estado da Bahia, sendo embarcada pela
estrada de ferro Leste-Brasileira para Juazeiro, de onde passava para os vagões
da via férrea Petrolina — Teresina, até Afrânio, seguindo daí em costados de
jumento para São João. Arroz, nem se falava. Só aparecia na mesa dos ricos. A
comida dos pobres era feijão com farinha, temperado com sebo ou tutano de vaca,
às vezes em mistura com o peixe da lagoa.
Os pessimistas não acreditavam em
chuva antes de janeiro do ano seguinte, pois a adversidade faz crescer o desânimo
e aumentar a falta de esperança, mas os otimistas, que sempre os há nessas
ocasiões, esperavam que viessem cedo as primeiras águas. Os devotos continuavam
a rezar e realizar novenas e promessas aos santos de sua preferência, pedindo
chuvas em abundância para aliviar o sofrimento generalizado.
O fim dessa história sinistra é
que no dia 26 de setembro desse nunca esquecido ano de 1932 caiu uma enorme
chuva em todos os recantos do então grande município de São João do Piauí. Não
havia pluviômetros por aqui, mas a precipitação pluviométrica foi tamanha que
encheu e fez sangrar os maiores açudes da região. O desafogo foi geral e as
rezas e novenas continuaram. Agora de agradecimentos aos prestigiosos santos
que mandaram a festejada chuva.
A surpreendente chuva do dia 26
de setembro alegrou os ânimos e fez restabelecer a confiança da população, de
dias melhores, mas não encerrou a campanha dos devotos de São João velho, que
continuaram reivindicando seu retorno ao trono. O padre José Maria Leau, todavia,
não se afastava de sua posição, negando-se a ceder às pressões, que considerava
fanáticas e supersticiosas.
A causa não era, porém, movida
por fanatismo, nem superstição. Tinha origem nos ensinamentos da própria igreja
do passado, escorada na crendice popular, que alimentava o culto exagerado das
imagens. Ainda hoje se veem pessoas entrar na igreja e visitar os altares de
diversos santos, fazendo prece a cada um deles, conforme as suas devoções e
necessidades. Pois bem, São João velho é quem representava a população católica
do município, que não queria transferir para outra imagem o afeto, a confiança
e os sentimentos de um arraigado amor filial. Continuou, por conseguinte, a
luta reivindicatória do restabelecimento do seu reinado.
Com a chegada do Padre Jerônimo
Marcos (1936), o caso seguiu outra direção. Ao entrar em contato com os
paroquianos, inteirou-se das divergências provocadas pela substituição da
imagem, deixando-o curioso e interrogativo. Ao viajar pelo interior do extenso
município, passou a conhecer melhor os detalhes do episódio e sentiu a
radicalização existente. Interessou-se pelo assunto na tentativa de encontrar
uma solução que levasse os católicos a ter uma posição unificada. Não lhe
interessava, como vigário, e muito menos ao santo padroeiro, a rivalidade e
disputa que grassavam entre os dois grupos.
Começou, então, a trabalhar nesse
mister até encontrar um denominador comum que conduzisse, como de fato
conduziu, ao consenso geral, sem melindres para qualquer das partes. Mandou
desenterrar a imagem sepultada, como se fosse uma ressurreição, fez pintá-la de
novo, como se fosse de roupa nova, deixou-a em exposição na casa paroquial para
receber visitas e declarou que ela seria levada à igreja em altar especial, sem
incomodar a imagem do santo novo, que permaneceria, como de fato permaneceu, em
seu altar.
Comunicou, ainda, que ficava
instituída uma espécie de governo parlamentar. O santo novo com o reinado e o
velho como primeiro ministro, com o direito de sair no andor das procissões.
Marcou um dia da próxima festa de
junho para a solenidade de rebatizar o santo ressuscitado. Abriu um livro de
inscrições para assinatura dos padrinhos e madrinhas, com a contribuição de
cinco mil réis.
No dia aprazado, formou-se a
enorme procissão de fiéis, todos de vela acesa nas mãos, à frente dos quais a
garboso e vitorioso São João Batista velho, que na pia batismal recebeu das
mãos do Padre Jerônimo as águas lustrais do santo batismo, entre os cânticos da
multidão entusiasmada.
A partir desse ano de 1938, até
1997, durante as procissões da festa de junho, São João Velho percorre as ruas
da cidade, carregado em andor pelos seus súditos e fiéis, para contento de
todos, em consequência do acordo firmado por Padre Jerônimo, como vigário, e os
fiéis.
No ano de 1998, São João Velho
foi substituído pelo novo, que desceu do trono, no dia 24 de junho, subiu num
carro aberto e desfilou pelas ruas.
Que houve? Quem rompeu o acordo?
Consta que foi o Padre Francisco Barroso, chegado recentemente para a função de
vigário coadjutor, com porte de primeiro ministro.
Você, prezado leitor, está de
acordo com esse desacordo? Eu, da minha parte, faço minha fé em São Joáo Velho,
de quem tenho a honra de ser padrinho.
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Notas da Organizadora:
Esse relato resulta da montagem
de dois comentários sobre o tema.
Em 1999 o santo velho volta ao
andor da procissão.